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Quando a Esperança renasce no mais profundo da dor

Atualizado: 5 de dez. de 2022


19h45min. Ufa! Conseguira terminar o último de doze pré-natais realizados aquela tarde, como médico de família em Guaratiba, bairro distante e (ainda!) pacato da querida Cidade Maravilhosa, antes do fechamento da unidade, 15 minutos mais tarde. Ansioso por cada segundo que faltava para regressar ao merecido descanso no aconchego do lar, fui arrumando todo o consultório, guardando os instrumentos, fechando as pastas... Ia para o derradeiro movimento de desligar o computador, encerrando o sistema por aquele dia, quando barulhos de passos apressados e estrondo de portas se abrindo pelo corredor lembraram-me de que, por mais que desejasse, o dia ainda não houvera encerrado. “É – pensei – (mais uma vez!) o descanso vai ficar para depois.”

Dirigi-me à sala de observação, para onde os ruídos se dirigiam. Tratava-se de uma senhora, debatendo-se, trêmula, fala confusa entremeada a gritos de desespero, carregada pelos agentes comunitários e enfermagem ali presente, prontamente avaliando os sinais vitais. Poderia pensar inicialmente em convulsão, não fossem vários movimentos voluntários que realizava e um tremor de pálpebras que deixava perceber um olhar vago, mas que tentava fitar no horizonte algum ponto de referência ou alguém a alentar o caminho. Pressão, temperatura, eletro e glicose normais não deixavam dúvidas: tratava-se de uma crise de ansiedade.

Busquei tranquilizar a paciente, evitando medicamentos desnecessários. Apesar do cansaço restava-me, pelo bem daquele encontro e porque não dizer, para sua maior brevidade, energia para conduzir uma conversa aberta, disposta a dar espaço àquela alma aflita para que se expressasse. Vali-me de um confortador copo d’água e a convidei para o consultório recém-arrumado, a fim de preservar sua privacidade.

“Como se sente agora?” – perguntei para iniciar nosso encontro. “Um pouco melhor”, falando entre soluços e sem coragem para erguer os olhos do chão, num misto de dor e vergonha pela cena que protagonizou, ainda que involuntariamente, minutos antes. “Como se chama?”. “Dolores”, respondeu timidamente. Era uma senhora de seus 45 anos, nunca a havia visto ali, confirmado por seu prontuário, completamente em branco. “Como posso te ajudar?”, insisti com delicadeza.

Falou-me que não dirigia há muitos anos e que resolvera, naquele começo de noite, pegar seu carro na garagem pois precisava comprar um remédio para a mãe com certa urgência e havia esgotado todas as possibilidades de parentes ou amigos que pudessem fazer isso por ela. Abriu o portão da garagem e dirigiu-se ao veículo. Porém ao girar a chave, ouvindo o ronco do motor e olhando a rua que se descortinava pelo espelho retrovisor, começou a debater-se, a gritar e chorar, repetindo como que um mantra às avessas: “eu não consigo, eu não consigo, eu não consigo...” Ia escrevendo tudo no prontuário já imaginando nas possibilidades diagnósticas: transtorno de ansiedade generalizada, pânico, fobia?

“Sempre teve medo de dirigir?”. Mais encorajada, ao perceber meu sincero interesse no caso, disse-me, agora a me olhar: “não doutor, sempre dirigi muito bem”. Era a deixa para que continuasse: “sempre, até quando?”. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos, dificultando o seguimento de nossa conversa. Usei então um segundo recurso, dois papéis-toalha que retirei da papeleira e passei a ela, a fim de reconfortá-la e encorajá-la a seguir. Com olhar grato, parecia que havia entendido o significado do gesto:

“Há uns 4 anos, em um final de tarde, parecido com esse, precisei ir ao mercado. Estava tirando o carro da garagem, quando minha única filha de 21 anos chegava do trabalho. ‘Filha!’, disse, ‘vamos ao mercado comigo?’. ‘Ah, mãe, estou tão cansada!’ ‘Por favor!’ ‘Tá bem, mãe. Vou para te fazer companhia.’ Adorava estar com ela! Saí com o carro, feliz pelo papo que teríamos quando aconteceu.” E chorou mais intensamente antes de prosseguir. “Um carro em alta velocidade atravessou o cruzamento e acertou pelo lado da porta do carona, fugindo em seguida. O carro rodou umas três vezes. Logo juntou muita gente em volta, os bombeiros vieram e nos levaram. Comigo tudo bem... mas minha filha – choro ainda mais convulsivo – nunca mais voltaria a vê-la”.

Dei uma pausa para respirarmos. Nesse momento já estava profundamente impactado com aquele sofrimento, com toda essa desesperança. Mas ela arrematou: “desde então, doutor, nunca mais consegui dirigir. Hoje foi a primeira e fracassada tentativa.”

Novo silêncio reinou, dessa vez, aquele silêncio longo, necessário e desconfortante, quando simplesmente não sabemos o que dizer, por faltarem palavras poderosas o suficiente para caberem tudo aquilo que se sente. Já tinha o suficiente para o dia: uma crise de ansiedade, frente a um luto ainda não resolvido. Muitas sessões de terapia seriam necessárias, posteriormente, mas ofereceria algum lenitivo àquela mãe sofrida, a fim de minimamente restaurar alguma dignidade frente a tão imensa dor. Mas como disse o silêncio inquieta. E, felizmente, nesse momento levou-me a quebrá-lo, em curiosidade sincera: “e sua filha como se chamava?”. Ela levantou seus olhos e quase sussurrou dizendo: “Tamara”. “E ela, trabalhava com o que?”. Parece que nesse momento uma fagulha de luz acendeu-se diante de seus olhos. E falava enquanto terminava de escrever: “Ela trabalhava como professora voluntária, para crianças especiais, em um lar de caridade. Todos adoravam a ‘Tia Tatá’ como era chamada. E, mesmo sem receber um centavo, era, de longe o trabalho que ela mais gostava.”

Novo silêncio, dessa vez mais curto. Já tinha pronta a receita e a orientação. Olhei o relógio, 19:59! A tentação de encerrar no horário bateu forte. Mas bateu mais forte uma outra pergunta que veio à minha mente. “Vou me arrepender por isso”, pensei, principalmente por considerar que a consulta demoraria um pouco mais. Felizmente a vontade de inquirir foi mais forte e falou mais alto:

“E a senhora? Já retornou aonde sua filha trabalhava?”

O semblante triste deu lugar a um olhar curioso. “Como assim?” “Você falou – redargui – que ela adorava o que fazia, cuidar daquelas crianças... Por que não dar esse presente as crianças. Acho que tia Tatá, de onde estiver, ficará muito feliz”.

Não me respondeu nada. Agradeceu o cuidado e a prescrição. Tanto a escrita no receituário e no encaminhamento à saúde mental, quanto a que reverberava na minha última fala. Meses depois, a encontrei, novo olhar, chave do carro nas mãos. “Doutor, estou dirigindo!”, falou feliz. Mas algo mais me chamou a atenção. Vestia uma blusa que estampava na frente a logomarca projeto onde sua filha, a querida e saudosa tia Tatá, trabalhava. E, no verso, em letras garrafais, a palavra que falava por mil: voluntária.

É... atrasei-me sim, mais uma vez, cinco minutos. Mas certo de que cada um desses minutos, ao ressignificar trajetórias de tantas vidas, terminaram por mudar, em definitivo, todos os demais minutos e horas que eu mesmo viveria, bastando para isso cuidar de permanecer a ser, pelas curvas do caminho.

_________________

Por Domingos José Vaz do Cabo:

Mestre em Saúde Pública

Médico de Família e Comunidade - Hospital Sírio-Libanês - São Paulo, SP

Coordenador do GT de Saúde e Espiritualidade da SBMFC - Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

Professor de Homeopatia da ABRAH - Associação Brasileira de Reciclagem e Assistência em Homeopatia.


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